Motorista rodoviário, fretamento e horas extras

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Motorista rodoviário de fretamento
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Motorista rodoviário de fretamento

Autor: Dr. João Lúcio Teixeira Jr.

As relações de trabalho entre empregados e empregadores, no caso da categoria específica dos motoristas rodoviários são regidas de forma geral pela Consolidação das Leis do Trabalho e de forma específica pela Lei nº12.619/2012, posteriormente alterada pela Lei nº13.103/2015.

Se trata de tema de grande relevância, haja o inestimável número de trabalhadores que compõem a imensa força de trabalho abrangida pela referida legislação, em todo o território nacional.

Uma vez que o tema é deveras abrangente, neste momento, abordarei tão somente aspectos controversos relacionados ao cotidiano dos motoristas que conduzem passageiros em viagens intermunicipais ou até mesmo locais, na modalidade denominada transporte rodoviário de fretamento.

Transporte rodoviário de fretamento

Fretamento, sob o ponto de vista jurídico, é o contrato de transporte, pelo qual, alguém, mediante prévio ajuste de preços, se compromete a ceder o uso do seu veículo para o transporte de pessoas e/ou coisas.

Muito comum em territórios de grande extensão e locais industrializados, é normal que uma multidão de trabalhadores se desloque cotidianamente entre duas ou mais cidades, no trajeto entre a residência e o trabalho, e vice-versa.

Pois bem, inseridos exatamente nesta dinâmica frenética se encontram os motoristas profissionais que, diariamente deixam suas residências antes do amanhecer, recolhendo passageiros pré-determinados em locais distintos das cidades, para posteriormente conduzi-los até o seu local de trabalho e, ao final da jornada diária, trazê-los de volta para os locais de partida.

Motorista rodoviário, aspectos relevantes na dupla jornada

Via de regra, tais trabalhadores, por questões de logística e custos operacionais, após cumprirem a primeira parte da suas atividades diárias, deixam de retornar para o ponto de partida, permanecendo em garagens e estacionamentos, ou até mesmo avenidas e praças até que se complete o horário de início da segunda jornada, que se dá mediante a busca dos passageiros e seu deslocamento de volta para casa.

Muito comum para os motoristas rodoviários envolvidos nessa modalidade de transporte, laborarem por 15, 16 e até 17 horas por dia, entre segunda-feira e sexta-feira. Aos sábados, em regra, conduzem passageiros em outro tipo de viagens, podendo ser de turismo ou rodoviários.

Além da extensa jornada de labor, superior à máxima estabelecida em lei, ditos trabalhadores se submetem à impossibilidade de convivência familiar e social, vez que, geralmente saem para o trabalho antes das 05:00 horas, retornando tarde da noite.

Muitas das vezes são submetidos a extensos períodos de espera em locais com pouca ou nenhuma condição de conforto e salubridade.

Mais chocante é que, na imensa maioria das vezes, sequer recebem por todas as horas de labor, mediante alegações que não se sustentam quando confrontadas com a legislação e que abordaremos, ainda que de forma sucinta.

Tempo à disposição do empregador e horas extras na dupla jornada do motorista rodoviário

O regime de dupla pegada é aquele em que a jornada de trabalho é dividida, com intervalo superior a duas horas entre uma pegada e outra. Mas esse intervalo só será válido se amparado em norma coletiva de trabalho. A ausência de norma coletiva autorizando esse regime, caracteriza tempo à disposição do empregador.

No caso dos motoristas rodoviários de fretamento é patente a adoção do regime de dupla jornada, visto que entre a primeira e segunda pegada os trabalhadores são expostos à extensos períodos de intervalo, não obstante, inexistir amparo normativo para tanto.

A maioria dos empregadores se recusa a pagar a totalidade das horas que compõem a jornada dos motoristas de fretamento, sob a falsa alegação de que no período em que permanecem à espera da viagem de retorno, não estariam à sua disposição, mas livres para utilizar tal período como melhor lhes aprouver.

Ressalta-se ser irrelevante o fato de, durante a pausa, o empregado não receber ou aguardar ordens do Empregador. Isso, porque, em função desse excesso ilegal do intervalo, ele permanece muito mais tempo envolvido com o trabalho, sem poder desligar-se dele.

A Súmula 118 do Tribunal Superior do Trabalho pacificou entendimento sobre o tema:

“Sumula 118. Os intervalos concedidos pelo empregador na jornada de trabalho, não previstos em lei, representam tempo à disposição da empresa, remunerados como serviço extraordinário, se acrescidos ao final da jornada”.

Além da inobservância da orientação contida no verbete sumular acima transcrito, as empresas ignoram a necessidade de norma regulamentadora capaz de autorizar o sistema de trabalho que habitualmente os motoristas são submetidos durante todo o pacto laboral.

Sobre o tema, assim têm entendido os Tribunais Regionais do Trabalho:

TRT 17 – RECURSO ORDINARIO TRABALHISTA RO 00018369820175170006 (TRT -17)

Jurisprudência – Data de publicação: 02/04/2019

EMENTA: DATA DO AJUIZAMENTO DA AÇÃO: 13/12/2017 DATA DO RECURSO: 05 e 24/09/2018 ESCALA DE “DUPLA PEGADA”. INTERVALO INTRAJORNADA SUPERIOR AO PREVISTO EM NORMA COLETIVA. HORAS EXTRAS. Pelo teor da prova oral produzida, extrai-se que o reclamante trabalhou em sistema conhecido como “dupla pegada”, consistente no labor em dois turnos, sendo um de manhã e outro a tarde com intervalo entre eles de até 6 horas, dependendo da linha. Contudo, esse tipo de escala de trabalho somente é válido quando previsto em acordo escrito ou instrumento coletivo de trabalho. A reclamada não trouxe aos autos nenhuma norma coletiva que autorizasse a jornada de trabalho adotada. Portanto, os intervalos em que o reclamante estava liberado da efetiva condução do veículo, ainda que o obreiro não estivesse dentro da empresa, configura tempo à disposição do empregador e, portanto, jornada de trabalho.

TRT 3 – RECURSO ORDINARIO TRABALHISTA RO 001149089201650300530011490-89.2016.5.03.0053 (TRT – 3)

Jurisprudência – Data de publicação 27/04/2017

EMENTA: REGIME DE DUPLA PEGADA. INTERVALO INTRAJORNADA SUPERIOR A DUAS HORAS. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. VALIDADE. O intervalo intrajornada superior a duas horas no regime de dupla pegada, é valido apenas se estabelecido em norma coletiva nos termos do artigo 7º, XXVI, da CRFB/88 e atendida a regra do artigo 59 da CLT.

Tempo de espera. Artigo 235-C da CLT.

Outro dos argumentos adotados pelos defensores da inexistência de obrigação de remuneração das horas em que o trabalhador permanece à espera da segunda parte da jornada, tem por fundamento a alteração legislativa trazida pela Lei 13.103/2015, que alterou o artigo 235 da CLT.

A Lei 12.619/2012, originalmente, assim dispunha:

§ 8º São consideradas tempo de espera as horas que excederem à jornada normal de trabalho do motorista de transporte rodoviário de cargas que ficar aguardando para carga ou descarga do veículo no embarcador ou destinatário ou para fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias, não sendo computadas como horas extraordinárias.

Saliente-se que o termo motorista rodoviário de carga foi alterado pela Lei 13.103/15, que suprimiu o termo “de carga”.

Após a promulgação da referida lei, assim ficou estabelecido pela Consolidação das Leis Trabalhistas:

Art. 235-C. A jornada diária de trabalho do motorista profissional será de 8 (oito) horas, admitindo-se a sua prorrogação por até 2 (duas) horas extraordinárias ou, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo, por até 4 (quatro) horas extraordinárias.

§ 1º Será considerado como trabalho efetivo o tempo em que o motorista empregado estiver à disposição do empregador, excluídos os intervalos para refeição, repouso e descanso e o tempo de espera.

§ 8º São considerados tempo de espera as horas em que o motorista profissional empregado ficar aguardando carga ou descarga do veículo nas dependências do embarcador ou do destinatário e o período gasto com a fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias, não sendo computados como jornada de trabalho e nem como horas extraordinárias.

§ 9º As horas relativas ao tempo de espera serão indenizadas na proporção de 30% (trinta por cento) do salário-hora normal.

Como se vê, originalmente, por ocasião da promulgação da Lei nº12.619/2012, o malfadado “tempo de espera” alcançava tão somente os motoristas de carga, não abrangendo motoristas envolvidos no transporte de passageiros.

Entretanto, posteriormente, houve a alteração do comando legal, que visou ampliar o alcance da norma, incluindo na previsão legal a totalidade dos motoristas rodoviários.

Entretanto, referido “tempo de espera”, para restar caracterizado deverá se dar somente nos momentos em que o motorista profissional empregado ficar aguardando carga ou descarga do veículo nas dependências do embarcador ou do destinatário e o período gasto com a fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias.

A nosso ver, dita alteração legislativa que alcançou o artigo 235-C da CLT, na redação dada pela Lei 13.103/2015, é inconstitucional por violar o princípio da vedação do retrocesso social, previsto no caput do artigo 7º, além de violação ao disposto no inciso XXII do artigo 7º, artigo 1º, incisos II, III e IV, artigo 6º e § 10 do artigo 144 da CF/88.

Motorista rodoviário. Intervalo mínimo entre duas jornadas e as horas extras

A título ilustrativo, cumpre transcrever a seguinte Ementa exarada pelo pleno do TRT 3ª Região:

ARGUIÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. INTERVALO INTERJORNADAS DOS MOTORISTAS RODOVIÁRIOS. § 3º DO ART. 235-C DA CLT (LEI 13.103/2015). É inconstitucional o § 3º do artigo 235-C da CLT, na redação dada pela Lei 13.103/2015, por violação ao princípio da vedação do retrocesso social, previsto no caput do art. 7º , violando ainda o disposto no inciso XXII deste mesmo artigo 7º, artigo 1º, incisos II, III e IV, artigo 6º e § 10 do artigo 144 da Constituição de 1988.

TRT 3ª Região:[1]

A seguir cumpre transcrever o trecho específico do acórdão que confronta com a decisão ora enfrentada:

Comparando-se os dispositivos ora referidos, percebe-se facilmente que todas as alterações (em especial a redação dada aos arts. 235-C, caput, e § 3º, 235-D, e ao art. 67-C, caput e §§ 1º e 3º do CTB) vieram para permitir que o trabalhador se ativasse por períodos mais longos, com menos intervalos, o que aumenta os riscos de acidentes nas rodovias, colocando em risco a saúde e a vida não apenas dos trabalhadores, mas de toda a população.

Deste modo, a Lei 13.103/2015 trouxe acentuado retrocesso social no que diz respeito aos direitos dos motoristas e ao ordenamento trabalhista como um todo.

A análise objetiva da lei permite chegar a esta conclusão, eis que o trabalhador poderá trabalhar 12 horas por diversos dias seguidos, com parcos intervalos, terá menos tempo para exercer seus direitos ao lazer e ao convívio familiar e social, não podendo descansar o tempo necessário para preservar a sua saúde, sendo obrigado a trabalhar em jornadas que o impedem de dirigir com segurança.

O ordenamento jurídico brasileiro não admite o retrocesso social, principalmente quando estão em jogo Direitos Fundamentais.

Intervalo entre duas jornadas. Limite mínimo de 11 horas entre o término de uma jornada e início de outra

Outro aspecto relevante que se verifica de forma recorrente na rotina dos motoristas que se ativam em condução de veículos rodoviários na modalidade de fretamento, diz respeito ao descumprimento da norma legal que estabelece intervalo mínimo de 11 onze horas entre duas jornadas de trabalho.

Neste sentido, o artigo 66 da CLT:

Art. 66 – Entre 2 (duas) jornadas de trabalho haverá um período mínimo de 11 (onze) horas consecutivas para descanso.

A alteração legislativa datada de 2012 determinou a possibilidade do fracionamento do referido descanso entre duas jornadas ao determinar período mínimo de 8 horas com posterior gozo das horas remanescentes no transcurso da jornada diária.

No mesmo sentido, os tribunais têm reiteradamente entendido pela inconstitucionalidade da referida determinação legal, mesmo quando previstas em convenções coletivas.

A jurisprudência tem-se posicionado em favor dos trabalhadores, de forma uníssona, senão vejamos:[2]

A violação ao intervalo interjornadas é evidente, como se verifica do controle de jornadas do período de 1º.5.2012 a 15.5.2012 (fl. 146), apontado na r. sentença. Com efeito, no dia 2.5.2012 o reclamante laborou até 20h50 e, no dia seguinte, retornou ao trabalho às 4h10. A inobservância do intervalo interjornadas não configura simples infração administrativa, pois, por aplicação analógica do art. 71, § 4º, da CLT e da Súmula nº 110 do C. TST, bem como da aplicação direta da OJ nº 355 da SBDI-1 daquela mesma C. Corte Superior, o tempo suprimido deve ser remunerado, independentemente do pagamento de horas extras pela extrapolação da carga horária diária ou semanal. No caso, não houve fracionamento do intervalo interjornadas a autorizar a aplicação do art. 67-A, § 3º, da Lei 12.619/2012.

Conclusão

Por questões relacionadas ao custo de deslocamento e logística, as empresas de transporte de pessoas em sistema de fretamento, muitas das vezes transferem parte do risco da atividade empresarial aos empregados, submetendo-os à extensas jornadas diárias de labor, que os impede de gozar uma vida normal, em companhia dos demais membros de suas famílias, uma vez que, muitas das vezes se dirigem ao local do trabalho antes da alvorada, retornando tarde da noite.

Tem-se, portanto, como se vê da análise da mencionada jurisprudência, que os tribunais do trabalho se posicionam contra a adoção de tais práticas, considerando reiteradamente que os trabalhadores submetidos à extensas jornadas de labor, em especial os motoristas rodoviários de fretamento, fazem jus ao recebimento das horas extras excedentes à oitava diária além das horas que forem suprimidas do seu intervalo entre duas jornadas, destinadas ao seu descanso e convívio familiar.

Autor: Dr. João Lúcio Teixeira Jr.

[1] TRT 3ª Região, processo nº0010793-96.2017.5.03.0000, rel. Marco Antonio Paulinelli de Carvalho. J. 07/12/2017.

[2] TRT 15ª Região, 6ª Câmara – Terceira Turma do Tribunal do Trabalho da Décima Quinta Região. PROCESSO Nº 0010540-37.2017.5.15.0045, julgado em 04.12.2018.


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